A MULHER REI (The Woman King, Canadá / EUA, 2022) - Crítica
As Amazonas de Daomé
Sinopse
Um exército de guerreiras negras decide que é horas de dar um basta no tráfico de escravos entre o reino de Daomé e o Brasil.
A diretora
Gina Prince-Bythewood é uma das raras diretoras negras respeitadas em atividade em Hollywood . Trabalha há mais de 30 anos como roteirista , produtora e diretora em séries e filmes para TV e em alguns filmes no cinema. Seus trabalhos mais conhecidos do público brasileiro são o premiado Além dos Limites (2000), que estreou em Sundance, o elogiado A Vida Secreta das Abelhas (2008) e a fantasia The Old Guard (2020), uma superprodução sem muito carisma da Netflix. Prince-Bythewood é conhecida por ter bastante cuidado com os atores em seus trabalhos e desenvolver uma parceria produtiva com os mesmos.
O filme
De acordo com os registros mais antigos, historiadores acreditam que as Agojie, o exército feminino do reino de Daomé, tenham existido a partir de 1729. E seu poder militar e político só acabou em 1904, quando a França derrotou o reino de Daomé e anexou o país como mais uma de suas colônias. Embora o Brasil seja um país com metade de sua população afrodescendente, nossa educação escolar é majoritariamente através de um viés europeu e branco. Tanto por conta da ignorância quanto por um racismo estrutural propositalmente bancado pelo estado. E por isso não surpreende nosso assombro diante de histórias como essa, mas que provavelmente eram bem conhecidas de muitos dos africanos trazidos como escravos para o Brasil nos séculos 17 e 18. Mas o que eles tinham a dizer sobre sua história por aqui sempre foi desprezado pela elite branca da época. E isso, em boa parte, continua até hoje.
Precisou que uma mulher, a atriz americana Maria Bello (Marcas da Violência, 2005) visitasse o Benim em 2015 e ficasse sabendo da existência histórica das Agojie, para que alguém de Hollywood finalmente entendesse a importância e o potencial narrativo da história dessas mulheres. De posse de algum material, Bello chamou a amiga roteirista Dana Stevens e juntas desenvolveram o argumento. Stevens escreveu o roteiro e junto com a produtora Cathy Schulman, ativista da organização Mulheres nos Filmes (dedicada a lutar por mais cargos e protagonismo de mulheres nos bastidores e nas telas do cinema), saíram a cata de potenciais estúdios investidores.
Como isso foi antes do lançamento de Pantera Negra (2018), nenhum estúdio estava interessado em fazer um filme com guerreiras africanas, pois acreditavam que não havia público para esse tipo de filme. O máximo que conseguiram foi um pífio orçamento de 5 milhões oferecido por um executivo.
Os estúdios também queriam fazer uma espécie de “whitewashing” (embranquecimento) nas guerreiras africanas e contratar ainda atrizes negras, mas com tons de pele o mais claro possível. O trio de mulheres (todas brancas, vejam só) manteve-se determinado a manter o filme o mais realista possível e isso incluía um tom de pele que fosse o mais nativo possível.
Mas com o estrondoso sucesso de Pantera Negra e suas guerreiras Dora Milaje (baseadas nas próprias Agojie), a produtora Schulman conseguiu trazer a diretora Prince-Bythewood , Viola Davis e Lupita Nyong’o (de Pantera Negra, mas que acabou saindo) e o filme se tornou prioridade da Tri-Star. O que comprova que, apesar da suposta alienação, filmes de super-heróis podem causar mudanças positivas na sociedade e na indústria.
A diferença mais importante deste filme sobre a fantasia Pantera Negra para plateias pretas do mundo todo e, especialmente para as mulheres, além de ser melhor dirigido e com um roteiro mais maduro, é que ele é baseado em pessoas e fatos reais, e não personagens que racistas tentam minimizar por serem ficcionais.
No fim, Schulman conseguiu 50 milhões (um orçamento modesto, mas honesto) e o filme fez 19 milhões em seu final de semana de estreia. Especialistas esperavam algo entre 12 e 16 milhões, o que comprova que o filme tem potencial para influenciar e gerar mais filmes desse gênero nessa década.
O Último dos Moicanos (1992), Coração Valente (1995), e Gladiador (2000) foram as principais influências cinematográficas para Prince-Bythewood em relação a como queria filmar e caracterizar suas protagonistas maiores que a própria vida. Como nesses filmes citados, com alguma exceção para Gladiador de Ridley Scott, a direção e câmera seguem a escola clássica de filmes de aventura e ação: minimalismo estético e sem deixar transparecer a mão da diretora para a audiência. E assim como foi com o Duna (2022) de Dennis Villeneuve, é um frescor assistir um filme onde as batalhas são feitas com atores e dublês de verdade e os efeitos especiais são tão bem feitos ou discretos que são imperceptíveis. E o objetivo da diretora de criar um filme de aventura ao estilo blockbuster foi concretizado. Tanto que até mesmo plateias alienadas da discussão política atual podem assistir o filme sem precisar pensar muito e ir para casa achando que tudo aquilo é coisa do passado.
A talentosa e oscarizada Viola Davis, sempre escalada para dramas intensos, surpreende aos 56 anos com sua Nanisca atlética e musculosa e John Boyega (da última saga Star Wars) são os nomes mais conhecidos de um elenco 90% negro. Mas estaque também deve ir para Lashana Lynch, que faz a destemida Izogie e Thuso Mbedu, a quem cabe, como personagem, apresentar ao espectador esse velho novo mundo. Sua personagem, Nawi, carrega o nome da última guerreira Agojie conhecida no século XX.
Uma das grandes preocupações da roteirista Dana Stevens e da diretora foi com a pesquisa. Como muito da história africana é contada do ponto de vista eurocentrista (e muitas vezes racista), ambas deram preferência para autores revisionistas e africanos para obter uma visão mais realista e sem preconceitos das “amazonas de Daomé”, como as chamavam os escravagistas brasileiros que aportavam no Benim. Outra ação importante para a diretora foi escalar pessoas pretas para várias das funções técnicas mais importantes, incluindo a diretora de fotografia Polly Morgan (da excelente série Legião). Ela justificou suas decisões baseada no talento dos artistas e não na extensão do currículo, que é algo que a maioria dos artistas negros tem dificuldade de conseguir, pois a preferência costuma ser dada para profissionais brancos.
Apesar da catarse e orgulho que o filme exalta para o povo preto, o filme romantiza os fatos e na vida real, apesar das Agojie terem favorecido o azeite de dendê uma matéria de exportação entre 1840 à 1870, vender seres humanos de outras nações e inclusive do próprio reino de Daomé, era muito mais lucrativo para o rei Ghezo, e a prática desumana continuou mesmo com a Inglaterra tendo obrigado oficialmente a nação a parar com o tráfico de escravos com as Américas, em especial com o Brasil. Mas como em toda sociedade complexa e especialmente as contendo mulheres em posições políticas, não é errado imaginar que poderia haver Agojies que se opusessem ao tráfico de escravos.
Passado numa época em que 99% das mulheres do mundo, incluindo as mulheres brancas, eram pouco mais do que meras escravas de seus pais e maridos e o sufragismo feminino mal engatinhava na Europa, uma das muitas coisas positivas que o filme nos traz é o (re)conhecimento dessas valentes mulheres que finalmente estão tendo seu lugar respeitado na História e na cultura popular.
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NOTA: Infelizmente no atual momento nazifascista da sociedade ocidental, o racismo e a misoginia, estimulados por líderes milicianos como o presidente do Brasil e o machista ex-presidente Trump, tomam conta de todas as áreas da sociedade, especialmente em setores mais progressistas, como os do cinema e teatro. Isto posto, assim como vários outros filmes que estão dando a devida relevância para protagonistas femininas e demais minorias, A Mulher Rei também está sofrendo ataques racistas na internet, visando desinformar e dar notas baixas para que desavisados achem que o filme é ruim por conta de sua cotação. Portanto, quem puder ir no IMDB dar a nota real que você acha que o filme merece, deixo o link abaixo da foto.
Bônus duplo: Música tema do trailer e As Agojie
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