DONA YOLANDA E A LIVRARIA COLETÂNEA – Crônica
A Coletânea ficava nos altos do Mercado Público. Naquelas janelas onde está indicado.
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Mil novecentos e oitenta.
Treze anos de idade.
Um ano de azar e de sorte.
Azar porque repeti o ano, sorte porque fiz amizades que ainda estão por aqui.
E por mais que os anos nos tenham separado durante certo tempo, esse texto não existiria se não tivesse conhecido essas pessoas.
Mas essa crônica não é sobre essas pessoas, é sobre uma outra, que apesar de não ter tido a oportunidade de conhecer bem, tratou a mim e aos meus amigos como se fossemos seus filhos, o que de certa forma, fomos.
Em Milão, esta Comics Store e sua bagunça organizada me lembrou muito o ambiente aconchegante da Coletânea.
Como eu dizia, foi em 1980 que um novo amigo me levou ao Centro e me fez subir os dois lances de escada que levavam ao terraço do Mercado Público de Porto Alegre. Havia uma placa antecedendo uma sala enorme onde maravilhas eram vendidas, trocadas, colecionadas e discutidas por pessoas de todas as idades. Na placa estava escrito Livraria Coletânea. Sua proprietária e única atendente era uma senhora de mais ou menos 50 anos: Dona Yolanda.
Uma paixão avassaladora dominava a mim e aos meus amigos na época. E a todos que entravam na Livraria Coletânea. Mas a mais apaixonada deveria ser, sem dúvida, a Dona Yolanda. Nossa paixão: Histórias em Quadrinhos, ou se preferir, gibis. Sim, gibis. E o que demonstraria maior paixão do que criar um lugar só para eles? Um lugar onde eles não fossem tratados apenas como mercadorias, mas onde as pessoas pudessem conhecer outros colecionadores, fazer amizades, criar fanzines? A Dona Yolanda não tinha a única Comics Store (na época esse nome nem existia) de Porto Alegre... havia outra, mas naquela, não se podia ficar mexendo nas revistas e as pessoas só entravam para comprar e nada mais. Para mim, era como se nem existisse.
Os álbuns gigantes de Flash Gordon ilustrados pelo mestre Alex Raymond foram uma aula de história dos comics.
Mas na Coletânea da Dona Yolanda a história era outra. Como uma simpática professora, ela nos mostrava, entusiasmada, todos os grandes mestres da ilustração e as melhores narrativas. E não posso deixar de dizer... era engraçado ser introduzido mais ainda no reino dos quadrinhos por uma pessoa mais velha que meus pais e que ainda por cima era mulher, já que o mundo dos Quadrinhos costuma ser essencialmente um Clube do Bolinha. E havia essa outra qualidade que só as livrarias mais modernas tem hoje em dia. Lá, podia-se ler os gibis! Comprando ou não, podia se ler de tudo! Posso dizer que já morri, fui para o Céu e voltei... E para quem acha que esse tipo de marketing não dá certo, engana-se. Eu acabava comprando boa parte do que lia, pois não conheço colecionador que após ler ou apreciar a história ou as ilustrações, que não fique com uma coceira no bolso.
Lá eu conheci e li a série de álbuns do FLASH GORDON escritas e ilustradas pelas magníficas mãos de Alex Raymond, descobri que os heróis da MARVEL já haviam sido editados por várias outras editoras além das conhecidas EBAL, RGE e ABRIL. Achei até uma revista de 1972 chamada HARTAN, O SELVAGEM, que não era outro senão o famoso CONAN, O BÁRBARO. O porquê dessa estranha modificação do nome ninguém soube dizer, mas hoje acredito que a editora simplesmente publicou o personagem sem pagar os direitos à MARVEL. Pirataria de gibis era comum na época...
Durante três anos eu frequentei a livraria duas vezes por semana para encontrar com os amigos, conversar sobre quadrinhos e ampliar minha modesta coleção. Me lembro com carinho certa vez em que estava com pouco dinheiro e queria muito comprar um exemplar de 1975 da revista do HOMEM-ARANHA que faltava na minha coleção e ela, notando minha decepção ao saber do preço, me vendeu pelo dinheiro que podia pagar!
E assim a Coletânea e a Dona Yolanda funcionavam, de modo meio anárquico, e nós agradecíamos, com muita propaganda boca-à-boca e comprando suas raridades. Mas como todo herói de Histórias em Quadrinhos, a Dona Yolanda teve seu arquiinimigo. O ano era 1983 e a prefeitura da época queria o espaço alugada da Coletânea para alojar um departamento do DMAE. Útil ou não, isso acabaria com o espaço cultural extra-oficial que era a Coletânea. Apesar do abaixo-assinado feito na época, a Coletânea teve que sair. Mudou-se para uma sala duas vezes menor em um prédio próximo, escondida entre os andares e entre escritórios burocráticos. Em 1985 conseguiu se mudar para uma grande banca externa entre o MARGS (Museu de Arte do Rio Grande do Sul) e o antigo prédio dos Correios (hoje um centro histórico cultural). Dona Yolanda não conseguiu se adaptar e passou a banca para sua filha e genro. Nessas alturas, a Coletânea como todos a conhecíamos, não existia mais. A mudança da Coletânea foi ruim para nós e muito pior para a Dona Yolanda, que já não se encontra mais entre nós.
O gibi do Homem-Aranha que a Dona Yolanda me vendeu com super-desconto.
Este e outros estão na minha estante até hoje...
Este e outros estão na minha estante até hoje...
Mas a paixão pelos quadrinhos que ela ajudou a gerar e a manter durante todos aqueles anos continua dando frutos até hoje. Sem ela, as Comics Stores que surgiriam logo após seu fechamento, não teriam surgido, pois elas apareceram para preencher o vácuo deixado pela Coletânea. E arrisco, até mesmo a GRAFAR, a associação de artistas gráficos do RS, sem as antigas e juvenis reuniões na livraria da Dona Yolanda no Mercado Público, onde boa parte dos colecionadores, desenhistas e roteiristas de Porto Alegre devem ter tido um agradável papo sobre Quadrinhos com ela.
Janeiro, 1993
P.S. – Infelizmente não tenho fotos nem da Dona Yolanda nem da Coletânea. Atualizei alguns dados do texto e desde 1997, o mezanino do Mercado Público, onde ficava a Coletânea, virou um local de alguns bons restaurantes e espaços culturais. Até feiras de Quadrinhos se realizam por lá agora. Ironias desse Brasil...
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bjss
Beijitos