O POBRE DE DEUS - Literatura



Capa da edição do Círculo do Livro.


Fazem 20 anos que li este livro e como estou sem tempo para escrever um resenha decente sobre ele, reproduzo a ótima crítica de Antonio Gonçalves Filho para a revista Época.

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O santo por um ateu

Kazantzákis, do polêmico A Última Tentação de Cristo, revira a vida de São Francisco de Assis.

A vida de São Francisco de Assis (1182-1226) já foi contada das mais variadas maneiras por cineastas como Roberto Rosselini, que fez dele um mártir, e Franco Zeffirelli, que o transformou num hippie. Entre o realismo do primeiro e a fantasia do segundo existe um abismo que só a literatura foi capaz de transpor. Particularizando, apenas um escritor polêmico como o grego Nikos Kazantzákis (1883-1957), autor de A Última Tentação de Cristo, poderia ter escrito O Pobre de Deus, biografia romanceada do santo italiano que nasceu rico, livrou-se das roupas de seda, dançou nu na praça principal de Assis, falou com pássaros e peregrinou até seus pés sangrarem e seus olhos ficarem cegos. Kazantzákis, excomungado pela Igreja Ortodoxa Grega, atormentado pelas idéias de Nietzsche e Bergson, marxista estudioso do budismo, era mesmo o nome para a difícil tarefa de explicar personalidade tão complexa.

Apesar de contada por um mendigo que segue Francisco e se torna monge, essa história tem como narrador o próprio Kazantzákis, transformado no etílico irmão Leo. O livro começa à beira do leito de morte do santo. O companheiro de jornada recorda as privações pelas quais passaram juntos, as dúvidas sobre a iluminação do amigo, o carisma e o confronto com a autoridade paterna ao renunciar à riqueza como um presente satânico e abraçar a vida simples. Modelo do homem que supera suas limitações para agradar a um Criador que parece fora deste mundo, Francisco é visto pelo escritor ora como o engraçado bufão de Deus, ora como um trágico cordeiro, marcado para mudar o mundo não por seu comportamento exemplar, mas, antes, por seus excessos. Kazantzákis elege-o como um profeta da não-violência muito antes de Gandhi.




Ao contrário dos dois, o italiano e o indiano, o grego foi um profeta sem esperança. Em seu túmulo mandou inscrever um epitáfio revelador: 'Nada espero. Nada temo. Sou livre'. Surpreende, portanto, a ausência desse sentimento niilista em O Pobre de Deus. O tema invariável de Kazantzákis, mais conhecido pela versão filmada de seu livro Vida e Façanhas de Aléxis Zorba (no cinema, Zorba, o Grego), sempre foi o da luta do homem com seu Criador, seja para não cumprir sua vontade (em A Última Tentação de Cristo), seja para mostrar que um mundo dependente de paixões e crucificações está irremediavelmente condenado. O epitáfio do grego é propositalmente ambíguo, mas recorre à essência do pensamento budista, a do homem que se esvazia para atingir a iluminação. Kazantzákis, que pôs Lênin, Cristo, Buda e Nietzsche no mesmo panteão, morreu ateu. Antes, disse que não era Deus quem iria nos salvar, mas sim nós a Ele, 'lutando, criando e transfigurando a matéria em espírito'. Nessa cruzada a serviço da transcendência, O Pobre de Deus, escrito em 1953, pode ser comovente para alguns e tremendamente perigoso para quem tem medo de literatura forte, produzida à beira do abismo.

Antonio Gonçalves Filho

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