CORINGA (Joker, EUA, 2019) - Crítica



Apenas mais uma engrenagem pervertida do sistema

Coringa chega aos cinemas com uma expectativa que quase rivaliza com a de Vingadores:Ultimato. Mas a proposta do filme de Todd Phillips, com roteiro dele e Scott Silver, é bem mais ambiciosa do que prestar fan service. E o fato do filme ter sido o primeiro baseado em personagem de quadrinhos a receber o Leão de Ouro em Veneza prova isso.

De início, contar a história do Coringa após a performance decepcionante de Jared Leto e sob a sombra da magnífica construção de Heath Ledger em Cavaleiro das Trevas, parecia algo bastante temerário. Mas Todd Phillips conseguiu convencer os executivos da Warner mesmo com um deles dizendo “Você sabe que a gente vende pijamas com estampa do Coringa pra crianças, certo?”.  Um ano depois, já com o roteiro na mão, toda a equipe executiva mudou e Phillips teve que convencer todos novamente de que o filme devia ser para adultos. É claro que o fato de Watchmen, Deadpool e Logan serem proibidos para menores e terem garantido boas bilheterias, ajudou. As séries adultas da Marvel no Netflix também comprovavam que existia uma boa parcela da audiência querendo ver filmes baseados em quadrinhos com protagonistas e histórias mais maduras e realistas. E quem não gosta de um grande vilão? Darth Vader, o Wilson Fisk de Vincent Donofrio, Thanos e o próprio Coringa de Ledger são personagens que vão permanecer no imaginário pop por décadas.


Arthur tenta desvendar um fato importante de seu passado no Asilo Arkham. 


Com o roteiro pronto, Phillips levou quatro meses para convencer Phoenix a fazer o papel. Phoenix já tinha recusado o papel de Dr. Estranho e Dr. Banner (também conhecido como Hulk) para a Marvel porque não queria ficar preso por contrato a franquias cinematográficas. Mas o diretor garantiu a ele que esse filme seria um solo dissociado do resto do universo DC que a Warner estava construindo nos cinemas.

Phoenix então partiu para a construção de seu personagem. Estudou doenças psiquiátricas e misturou várias delas para que psicólogos de plantão tivessem dificuldades em diagnosticar seu Coringa, já que o personagem nos quadrinhos, quando bem roteirizado, é quase uma força da natureza, um ID encarnado. E entre as muitas doenças que pesquisou, ele descobriu um transtorno que se chama Afeto Pseudobulbar, que é quando, por motivos diversos, alguém não tem controle sobre suas emoções e pode desandar a rir sem parar e sem motivo. Com uma risada patológica e sem sentido, Phoenix tinha um trunfo que não precisaria competir com a risada sinistra que Ledger criara para o Coringa de Christopher Nolan.  Além de perder 26 Kgs para ajudar a compor o quadro depressivo e desamparado de seu personagem Arthur Fleck, Phoenix se preocupou com a questão de uma possível glamurização de um vilão psicótico e tentou buscar uma caracterização com a qual a maioria das pessoas não pudesse se identificar. A maioria não, mas uma pequena minoria parece ter se identificado. E é aí que o filme virou polêmica.


A loucura começa quando você percebe que não tem mais nada a perder na vida.


Você sabe o que é um INCEL? INCEL é a sigla para Involuntary Celibatary, ou em português, Celibatário Involuntário. Esse é um grupo já antigo na sociedade moderna, mas que agora se encontraram nas redes sociais e grupos de Deep Web. Como o nome diz, são pessoas que se veem forçadas a serem celibatárias. Até onde se sabe, são todos homens, brancos, adolescentes e jovens adultos que, por conta da aparência, timidez excessiva, bullying, inabilidade social ou homossexualidade reprimida, não conseguem ficar ou transar com mulheres como acham que deveriam. E as culpam por isso. Isso os leva a um estado de ressentimento e misoginia que, ao ser incentivado por seus pares, leva alguns a cometerem atos de violência. Dois exemplos bastante conhecidos são o caso do atropelamento de mulheres em Toronto, Canadá, no ano passado e o massacre de Suzano, São Paulo, em março desse ano.           

Ao saberem que este novo Coringa teria algumas características INCEL, os que se assumem como parte dessa tribo e muitos extremistas de direita em geral passaram a eleger este Coringa como seu novo “herói” na cultura pop. Inclusive uma conta no Twitter dedicada ao personagem ofendia constantemente todas as minorias possíveis. O que me parece que falhou para alguns críticos e espectadores que resolveram responsabilizar o filme por conta disso é que esqueceram que, como qualquer obra de arte que se pretende ser algo mais do que entretenimento, o Coringa de Phillips e Phoenix tem camadas. E se o público INCEL quiser apenas ver o seu próprio comportamento nas tela, ele verá apenas isso. Assim como me pareceu que o crítico sentado a minha frente e que não parava de comentar o filme com o colega ao lado não se importava com a densidade psicológica que o diretor tentava construir. Um filme onde o diretor se preocupa em construir cenas líricas e tensas é melhor sempre apreciado quando se absorve com atenção os momentos que sucedem as ações dos personagens. Não é cortando o clima a toda hora com comentários, amiguinho.


Coringa é um daqueles raros filmes que já nasce um clássico.


Mas o que foi que eu vi afinal?

Depois da decepção de Vidro de Shyamalan e Brightburn de Yarovesky ter sido apenas bom, Coringa era minha grande esperança de ver uma abordagem madura para um filme inspirado em quadrinhos. Como eu sou um adulto que já tem algumas décadas assistindo filmes para público adolescente, tem uma parte de mim que já está um pouco cansada de ver os mesmos filmes sobre Bem X Mal sem que haja uma nota política ou psicológica interessante ou original para torná-los mais relevantes. Nada contra os filmes da Marvel, embora só goste mesmo de metade deles, mas eu não sou mais o público-alvo principal do estúdio. Felizmente, como eu esperava, Coringa não me decepcionou. Com uma linguagem e roteiro inspirado nos filmes de Scorsese (Taxi Driver, O Touro Indomável e O Rei da Comédia) e emulando a atmosfera suja e crua dos filmes americanos dos anos 70, Phillips tem o cenário perfeito para Arthur Fleck, um ex-interno de ala psiquiátrica dependente de medicamentos que vive com a mãe doente e iludida (a ótima Frances Conroy da série A Sete Palmos), que trabalha como palhaço contratado para todo tipo de serviço e tem um crush pela bela vizinha Sophie (Zazie Beetz, a Dominó de Deadpool).

Lutando pela sobrevivência e tendo sua vida e sonhos cada vez mais esmagados pela crise econômica e social de Gotham City, Arthur ascende numa espiral de confusão mental e violência que culminarão na sua transformação e aceitação do caos que é a vida e morte nos grandes centros urbanos modernos. O filme trata de questões políticas atuais e relevantes como a luta de classes e políticos canalhas. Há literalmente uma revolta de parte da população contra ricos depois que Thomas Wayne, pai de Bruce e candidato a prefeito, diz na TV que perdedores, as pessoas que não se deram bem na vida, são palhaços para ele. Com uma retórica que se assemelha a de Trump e outros bilionários que enriquecem a custa do empobrecimento da população, o filme tem questões sociológicas, pois no futuro Bruce Wayne vai preferir usar seu dinheiro para sair a noite batendo em criminosos do que investir na educação, cultura, saúde e segurança para evitar que mais deles surjam no futuro. Só muito recentemente um ou outro roteirista resolveu abordar essas questões econômicas nos quadrinhos.




Por conta dessa questão política, que até o Coringa de Ledger abordava mais superficialmente, a luta contra o sistema e como esse sistema, no caso, o capitalista, impede e destrói sonhos e expectativas, Arthur decide que vai lutar contra ele, que é algo que os INCELs e paranóicos extremistas pensam que estão fazendo, mas eles estão apenas se juntando a banda mais doente do sistema ao adotarem métodos mais drásticos de terror e violência que o estado usa de forma mais sutil na maior parte do tempo (A não ser quando é para invadir favelas para atirar contra negros e pobres.) Eles apenas deixam de ser vítimas para serem vitimizadores, abusados para se tornarem abusadores. É um comportamento emocional e psicológico bastante comum em qualquer pessoa que não procura tratamento terapêutico. Sem cura, a pessoa que se acha certa em suas opiniões, que se vê como “herói” de sua vida, vive para se tornar o vilão na vida de outras pessoas. Alguém que apenas alimenta o ódio e o caos do sistema, tornando a vida em sociedade cada vez mais insuportável. Por isso não é difícil entender que parte do povo, no filme, se identifique e torça pelo palhaço louco e homicida que faz o que bem entende sem se importar com as consequências. Afinal, um mundo que elege políticos narcisistas e que beiram a psicopatia como Duterte, Trump e Bolsonaro,  é um mundo insano que a cada dia empodera mais e mais Coringas para destruirem nossas vidas e nosso futuro.

É por isso que não vi nada glamurizado no filme de Todd Phillips, pois todo mundo sabe que o Coringa é um maníaco homicida e assistir seu nascimento na performance visceral de Phoenix é tão triste quanto assustador. 

             

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