VIDRO (Glass, 2019) – Crítica

 Arte de Alex Ross.
Ross tem sido um colaborador da trilogia desde o primeiro filme.


Como não dá para falar de Vidro sem mencionar os dois filmes anteriores, fiz breves resenhas  sobre cada um antes de me debruçar sobre o encerramento de trilogia sobre a mitologia dos super-heróis do roteirista e diretor M. Night Shyamalan. E sim, o Blu-Ray já saiu e essa crítica é para quem já viu os filmes.

CORPO FECHADO (Unbreakable, 1999)



David Dunn (Bruce Willis) é o misterioso sobrevivente de um acidente de trem que vitimou 131 pessoas. Assediado por Elijah Price (Samuel L. Jackson), um excêntrico colecionador de quadrinhos com uma estranha teoria, David tenta descobrir se a ideia de Price sobre ele é verdadeira ou não.
Realizado logo após O Sexto Sentido, M. Night Shyamalan escreveu e dirigiu esta pequena obra-prima baseada no universo dos quadrinhos de super-heróis. Para mim, esta é uma das narrativas mais sóbrias e maduras que um apreciador desse gênero pode ter a oportunidade de assistir. O que a maioria dos filmes baseados em quadrinhos de super-heróis leva 30 minutos para contar, Shyamalan aprofunda e ocupa as quase duas horas do filme com a origem do seu. Com dezenas de referências, realista e sem glamour algum além da bela fotografia de Eduardo Serra e da marcante trilha de James Newton Howard, o roteiro de Shyamalan sustenta com sensibilidade a busca do protagonista e de seu antagonista por um sentido e propósito para sua vida.


FRAGMENTADO (Split, 2016)



Três garotas são raptadas por um suposto serial killer (James McAvoy) com múltiplas personalidades, mas nem todas estão de acordo com o crime e uma das personalidades tenta avisar sua psicóloga antes que uma nova personalidade terrível surja.

Financiado com recursos próprios, assim como o anterior A Visita (The Visit, 2015) e a um custo baixíssimo de 9 milhões de dólares comparados com os 75 milhões de Corpo Fechado, essa obra rendeu praticamente a mesma quantia do primeiro filme da trilogia, o que é bem justo, visto que é um filme com praticamente a mesma qualidade narrativa do Shyamalan de 1999.  Com uma trama densa e emocionalmente envolvente, Casey Cooke (Anya-Taylor Joy de A Bruxa) e Kevin Wendell Crumb são novamente dois lados da mesma moeda: ambos vítimas de abusos sexuais, físicos e psicológicos na infância, mas que resolvem suas angústias de modos muito diferentes.  McAvoy se esforça para nos apresentar várias das 23 personalidades de Crumb e é muito bem sucedido em todas. Sua Besta é convincentemente assustadora. Uma pena que a Academia não reconheceu o seu belo esforço.  O final, onde revela-se que o filme faz parte do mesmo universo de Corpo Fechado, era um twist esperado há quase duas décadas pelos fãs.


VIDRO



E 20 anos depois temos a conclusão da obra-prima de suspense e homenagem aos quadrinhos de super-heróis que foi Corpo FechadoVidro tem uma direção acima da média e atores veteranos de talento mais que comprovado, mas parece que Shyamalan não consegue fazer mais do que dois roteiros bem estruturados em sequência sem que o terceiro não demonstre queda abrupta de qualidade narrativa.

Foi assim com O Sexto Sentido / Corpo Fechado e agora com A Visita / Fragmentado.  Shyamalan aparentemente tinha tudo nas mãos para realizar uma conclusão fenomenal, com David Dunn enfrentando dois dos vilões mais fascinantes e tridimensionais (ou seriam vinteequatrodimensionais?) dos últimos tempos no gênero.  Em uma cultura superlotada com vilões com justificativas tolas ou forçadas para suas existências,  os personagens de Mr. Glass e A Besta possuem uma densidade psicológica que só encontram eco em Watchmen e Batman – O Cavaleiro das Trevas.


Interpretar tantos personagens de uma só vez é um presente para atores do nível de McAvoy. 
   

O filme começa de forma óbvia, mas honesta, mostrando quatro adolescentes sequestradas pela Horda sendo ameaçadas pela alter ego Patricia para em seguida cortar para David Dunn punindo criminosos comuns. Próximo passo: ir atrás da Horda e a Besta. Aparentemente Dunn passou os últimos 20 anos como um típico super-herói de quadrinhos, apenas combatendo crimes de rua, sem se atrever a usar seu sexto sentido para capturar/denunciar criminosos de colarinho branco como alguém com senso de justiça mais inteligente poderia fazer no suposto mundo real proposto por Shyamalan.   A primeira batalha com A Besta, algo que a maioria dos espectadores esperava apenas na metade do filme, já ocorre nos primeiros 20 minutos e apesar de curta, é bastante empolgante. A seguir, ambos são presos pela polícia e continuamos sem saber se Dunn é realmente invulnerável a balas.

Em seguida ambos são levados para a mesma instituição psiquiátrica onde Elijah Price segue internado há 20 anos. Supostamente sedado há anos, ainda assim ele é levado para uma terapia de grupo onde a Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson de American Horror Story) os vai tentar convencer de que eles são apenas pessoas normais que tem delírios de ter habilidades muito superiores as de uma pessoa normal. Ela chega a usar o termo super-herói.  O problema do roteiro nesse ponto é tentar fazer com esse questionamento seja levado a sério pelos três personagens que tem provas mais do que suficientes para si mesmos (e testemunhas) de que eles são realmente extraordinários. E pior ainda, achar que o espectador vai embarcar ou se preocupar com isso, sendo que existem dois filmes e mais uma cena de luta anterior a essa cena onde todos demonstram sua superioridade física e intelectual.  E se a psiquiatra não acredita que eles não tenham superforça, porque David Dunn está acorrentado ao chão? Ou porque a cela dele precisa de mangueiras de alta pressão se uma pessoa comum é incapaz de arrebentar uma porta de aço? Detalhes como esses tornam vazios os questionamentos da psiquiatra e forçadas as dúvidas que Shyamalan nos protagonistas.


A paleta de cores da direção de arte e figurino.
Glass veste roxo; Kevin, laranja; Dunn, verde. 
A psiquiatra veste rosa e eles estando sob seu domínio, são entrevistados em um grande salão rosa. 


Em relação a psiquiatra interpretada por Sarah Paulson, sua personagem não age de forma muito profissional e em muitas cenas ela soa com uma raiva contida ou um certo nervosismo que não condiz com uma pessoa habituada a tratar pacientes com transtornos do tipo que ela trata. Má condução do diretor ou limitações da atriz? Aliás, um dos muitos furos do roteiro é ela dizer para o trio preso que está habituada a tratar pessoas que acham que são super-heróis para em seguida lhes perguntar porque só existem apenas eles se acreditando “super-heróis”? E assim Shyamalan vai enterrando a lógica da personagem em uma sucessão de diálogos ruins e falhos. Outros personagens que parecem deslocados são os dois enfermeiros, aparentemente os únicos que trabalham naquela ala do hospital, junto com guardas, onde também não há outros médicos. Na verdade, só depois de quase 40 min no hospital começamos a ver pontualmente alguns enfermeiros e outros funcionários do hospital.  Algo bem estranho para um lugar que parece ter capacidade para ter mais de 100 funcionários e 500 pacientes.  E sobre os dois enfermeiros que cuidam deles: um é sádico e o outro debochado. Bem realista. ;-)

Também não faz sentido o fato de Dunn querer enfrentar a Besta após descobrir que ele está preso em uma cela próxima a dele. Ele fala como se precisasse matar o serial killer, como se o fato dele estar preso não bastasse. Mas David Dunn não é um assassino, portanto, mais uma vez, Shyamalan coloca frases e ações sem sentido na boca de seus personagens. O fato da Besta não conseguir escapar de sua cela porque as luzes o transformam em seus alter egos mais fracos é uma piada sem graça, visto que qualquer espectador minimamente inteligente raciocina na hora que basta fechar os olhos ou protegê-los com um travesseiro que a Besta poderia correr direto para a porta e colocá-la abaixo. Mas apesar de ter 23 pessoas dentro de Kevin, a Horda não chega a essa conclusão óbvia e ficam na dependência de Mr. Glass aparecer para libertá-los.   


Mesmo em uma cadeira de rodas, Samuel Jackson consegue transmitir uma aura ameaçadora.


Por conta das limitações de orçamento autoimpostas pelo diretor, quase todo o filme se passa dentro dos limites do prédio onde estão encarcerados e apesar de ser uma decisão arriscada, Shyamalan sabe manter um suspense razoável que nos façam esquecer que passamos muito tempo ali dentro.  Isso é claro, não faz o espectador deixar de desejar que as fugas desejadas e planejadas pelos personagens aconteçam o quanto antes. E embora o filme leve seu nome, Mr. Glass demora metade do filme para começar a agir. Mas quando age, não decepciona.  O que decepciona e cansa são os diálogos excessivos em torno da construção e estrutura de quadrinhos de super-heróis. Esses diálogos acabam sendo colocados na boca dos coadjuvantes também, que reagem à descoberta de como funciona uma narrativa ficcional como se nunca antes tivessem lido um quadrinho, livro ou sequer visto um filme de ação. A estrutura de roteiro de quase todas as obras dentro da cultura pop seguem uma estrutura bastante cimentada desde a primeira metade do século XX e não há que não esteja familiarizado com os clichês dela. Ainda assim, Shyamalan insiste em explicar super-heróis para uma plateia que provavelmente já assistiu mais de 40 filmes e diversas séries desse novo gênero desde que Corpo Fechado foi lançado em 1999. Se tivesse lançado os 3 filmes entre 1999 e 2005, ele teria sido um dos pioneiros responsáveis pela explosão do gênero. Agora, só fica a sensação de que ele não só perdeu o trem como ainda o descarrilhou com as soluções finais encontradas.

E então temos o final do terceiro ato, com o confronto literalmente narrado por Mr. Glass, explicando a estrutura narrativa do roteiro de quadrinhos ao mesmo tempo em que ele acontece no filme, quase como se um estudante de cinema estivesse comentando as cenas em um vídeo no You Tube. Ações são paralisadas por monólogos, personagens esperam falas serem finalizadas para se moverem, tudo caminha em um passo lento e fragmentado de um quadrinho mal escrito. A solução para os protagonistas varia entre o correto, o forçado e o patético, mostrando que Shyamalan não sabia como resolver o filme.  Mas nada disso preparou o espectador para o twist da ordem secreta milenar que extermina seres super dotados há dez mil anos e só conseguem se falar em bares e restaurantes depois de esperar que os demais clientes comuns se retirem. Dez mil anos e não conseguiram construir ou alugar um pequeno auditório para suas reuniões. Aqui no Brasil os neopentecostais conseguem construir um templo  em cada esquina todo mês.


Um dos vilões mais assustadores dos últimos anos.


Mas temos mais twists e a morte de Elijah Price não foi em vão e o vídeo da batalha entre David Dunn e Besta é carregado na internet para o mundo todo através de sua mãe, do filho de Dunn e Casey. O filme mostra uma multidão surpresa  com o fato, mas em um mundo repleto de milhões de vídeos virais com todo tipo de efeitos especiais, porquê um vídeo desses causaria tanta comoção? Meu palpite é que a grande maioria das pessoas o classificaria como Fake News, publicidade ou teoria da conspiração. Novamente, se Shyamalan tivesse lançado esse filme em 2005, esse tipo de artifício seria levado mais a sério e seria original. Hoje é só um clichê com um impacto forçado.
   
Como em seus dois filmes mais recentes citados anteriormente, Shyamalan novamente pagou do próprio bolso os 20 milhões que custaram Vidro (15 vezes mais barato que Vingadores – Ultimato). Obviamente, os três grandes astros envolvidos toparam receber cachês simbólicos e porcentagem da bilheteria, pois se fosse uma produção de estúdio, só o cachê do três combinados já somaria o custo total desse filme. O que foi bom para todos os envolvidos, pois o filme faturou 246 millhões de dólares, mais de 12 vezes o seu custo. O que significa que Shyamalan vai manter total liberdade criativa e de edição em sua próxima obra. Esperemos que ele consiga dar a volta por cima mais rápido dessa vez e não estrague mais filmes como fez com esse que prometia ser um grande final da quase melhor trilogia de supers para adultos jamais feita, mas cujo último filme foi tão decepcionante quanto a morte de seu protagonista original.

Torcendo para que Shyamalan não desperdice sua liberdade dos estúdios em um filme morno.


Os destaques do filme, que deveriam ir especialmente para a direção e roteiro, ficam para o trio de atores que carrega o filme nas costas graças ao seu talento, a direção de arte e figurino com sua paleta de cores para cada personagem e especialmente pela excepcional trilha dissonante e climática de West Thordson. Uma obra mais corajosa e arriscada do que o filme todo.

Em tempo, o Blu-Ray tem diversas cenas deletadas que mostram que o hospital tinha mais atividade e vida do que o filme original mostra e o diretor explica que o primeiro corte tinha mais de 3 horas e que teve que cortar mais de uma hora de cenas. Talvez algumas delas ajudassem a melhorar um pouco a narrativa, mas dado o roteiro e os furos demasiados que ele contém, não tenho certeza que isso o salvaria.




A título de curiosidade, Staple em português quer dizer grampo, que é justamente aquele pedacinho responsável por unir as páginas dos quadrinhos.  E apesar de Shyamalan ter filmado duas cenas de Vidro em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, nenhuma dessas cenas aparece no filme ou nas cenas deletadas do Blu-Ray.  A teoria é que essas cenas mostravam outros super-humanos em outras partes do mundo e pessoas assistindo cenas com super-humanos no noticiário. No filme Sinais, a cidade de Passo Fundo, também no Rio Grande do Sul, aparece no filme. Aparentemente Shyamalan tem algum contato com o estado que o faz gravar aqui às vezes.


Trailer





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